terça-feira, abril 07, 2009

O Apartamento 155

Há trinta anos existia e habitava o mesmo local no Edifício Morgana Le Fay, nunca se ouvira nada de estranho sobre ele, era silencioso, poucos o conheciam e diziam que era aprazível, porém tudo mudou quando Dona Mariusia veio lhe fazer companhia, a principio se deram muito bem, apesar da diferença de mais de trinta anos, a senhora era uma cozinheira de mão cheia e o local cheirava a biscoitos da primeira hora do dia até o anoitecer, ela contava história de sua mocidade e como gostava de bater papo à anciã.


Tudo corria as mil maravilhas, quando as maneiras, digamos excêntricas, da velhota começaram a surgir, primeiro foram os gatos, não um ou dois, mas dezenas deles, todos os bichanos achados na vizinhança ela acolhia, era uma sinfonia de miados sem hora para começar e terminar, os vizinhos já lhe dirigiam adjetivos pouco dignos, a situação piorou quando a limpeza se tornou precária, o cheiro dos biscoitos misturado aos de fezes e urina felinas, isso o embrulhava, tentou argumentar, recebeu ouvidos moucos, pior teve a porta destroçada pelas unhas dos animais, a parede mofada, pois dona Mariusia não tinha mandado consertar o vazamento, gastava todo o dinheiro em bingos e ração, não colocava o lixo pra fora e repetia insistentemente a cada meia hora a mesma história.


Sua paciência chegara ao limite, faria ela se mudar de qualquer maneira, planejou, passou noites em claro, decidiu que começaria a operação atacando onde mais doía, nos gatos, iria sumir com eles, isso talvez trouxesse a idosa a razão. O primeiro a sentir sua ira foi Leozinho, um gato rajado em ruivo e mel, a oportunidade surgiu em uma das idas ao bingo, o gato alvo tinha mania de subir no encosto do sofá e afiar as garras na parede junto a janela e ficar brincando com a cortina, em um momento de distração do bichano, uma janela aberta de sopetão, o sofá tremeu, Leozinho tentou se agarrar na cortina, sem êxito fora lançada junto com ele do 15º andar, nada mais a fazer a não ser miar a espera do impacto.


Dona Mariusia chegou tarde aquele dia, deu de cara com o zelador segurando sua cortina, o homem não encontrava formas gentis de contar o ocorrido, desembuchou de uma vez, as pernas da mulher bambearam, sentia tonteiras, justo Leozinho o seu preferido, que crueldade, subiu para sua casa, olhou para a janela, fechada, trancada na verdade, sentou-se no sofá e acariciava a cortina onde alguns fios ruivos se sobressaiam, não entendia como aquilo tinha acontecido, foi então que notara o silêncio, onde estavam seus outros filhos, sim era isso que eles eram para aquela antiga bibliotecária, chama daqui e nada, coloca a ração no pratinho nenhum deles aparece, ensimesmada e amedrontada pelos acontecimentos começa a busca, nem sinal dos felinos, bate nos vizinhos, talvez alguém saiba de algo - pensa. Enfim, a empregada do 156 viu uma debandada geral dos filhos de Dona Mariusia pela porta da área de serviço, disse que os coitados corriam como se tivessem visto o capeta em pessoa, rolavam a escadaria em desespero, tentando fugir seja lá do que for que estivesse lá dentro, quando ela tentou ver o que acontecia a porta foi batida na sua cara.


A senhora não podia acreditar todos tinham fugido, mas por que isso, como puderam abandoná-la assim sem motivos, afinal o que acontecera ali, entrou, os anos e o dia agitado lhe pesavam nas costas, dirigiu-se ao banheiro, precisava de uma ducha, estranhamente os azulejos mostravam uma certa condensação, a porta do box travada e embaçada, forçou a abertura, uma nuvem de vapor saiu e abriu espaço para uma cena horrível, três dos seus gatos ali mortos, escaldados, não suportou tentou gritar de medo e pavor, mas a garganta se fechara, fez um movimento rápido para sair, mas a porta se fechou, dona Mariusia assustou-se mais ainda, o chão escorregadio terminou tudo, desequilibrou-se, sua têmpora de encontro a borda do bidê e o sangue inundou e tingiu de vermelho os azulejos brancos. Por dentro ele se sentia leve, regozijava de felicidade e alívio por ter sua calma e liberdade novamente, podia-se ouvir até um riso preso.


Passaram-se alguns meses após a tragédia, ninguém no prédio falava mais sobre o assunto, às vezes um sussurro a sua porta, mas nada demais. Fazia poucos dias que tinha nova companhia, era Alberto, rapaz, estudante de direito de uma famosa universidade privada, tinha hábitos regrados, não fazia barulho, passava a maior parte do tempo no quarto estudando, trazia um ou outro amigo, mas era coisa rara, um jantar, estudos e iam embora sem problemas, viveram sem maiores entreveros durante 6 meses, o rapaz nada fazia que o desagrada-se, foi quando aconteceu o pior, Alberto levara ao mesmo tempo pau em Medicina Legal e um belo par de chifres da namorada, não conseguiu se segurar, mesmo com o apoio que ele lhe dera, o futuro advogado se entregara a bebida para esquecer, trocara de amigos, os novos lhe apresentaram um mundo mais cruel e desumano, baladas pesadas, drogas, Alberto afundara-se e transformara toda a sua vida em desordem, barracos etílicos, confusões com moradores, pichações em suas paredes, depredações gratuitas de janelas, pintou um alvo na porta do quarto e treinava arremesso de tudo que tivesse a mão.


A situação ficou insustentável, não suportava mais o cheiro de bebida, maconha e suor que impregnavam o ambiente, voltara a ser alvo de piadas e xingamentos nas reuniões do condomínio, era humilhado até pelo rapaz, apresentado como o lixo, a bosta, a inutilidade, não tinha mais jeito, com o garoto não haveria mais diálogos, lembrou-se de Mariusia, sim, faria a mesma coisa, só que dessa vez com mais energia, menos planejamento e não contaria tanto com a sorte, seria rápido e simples. E foi, na noite seguinte Alberto acordou tarde, escutou um barulho estranho na cozinha, a torneira jorrava, o chão alagado, estranhou, mas deu de ombros, enfiou o pé na água, sentiu um formigamento na perna que passou para o corpo todo, despencou se contorcendo e babando no chão inundado, ficou como última imagem na sua retina o fio descascado boiando e ligando a geladeira a tomada.



Foram dois anos de muita paz, tinha desistido da companhia de pessoas sós, e optou por um casal jovem, e que alegria, encontrara em Paco e Melissa grandes companheiros, gentis, prestativos, se sentia como novo, abria as portas, deixava o ambiente ventilado, se iluminara com a gravidez da jovem e estava radiante com a chegada do pequeno Diego, a primeira noite do bebê no novo quarto, todos dormiam, ele finalmente desfrutava de noites tranqüilas, quando o pequeno começa a chorar, esgoela-se na verdade, os pais de primeira viagem não acordam, ele tenta acalmar o gurizinho, nada, lembra-se de Mariusia e Alberto, ferve, vai resolver de vez a questão, bate a porta do quarto, o casal acorda assustado, tenta desesperadamente entrar, todos os esforços em vão, Diego chora sem dó, a lâmpada pisca num ritmo furioso, incessante, as paredes tremem, tingissem de rubor, a janela abre e fecha com voracidade, de repente silêncio, tudo se acalma, a porta destranca, lá dentro do quarto no berço, o garotinho sorri como se nada tivesse acontecido, os pais não sabem o que pensam, acham que era um sonho, por uma fresta na janela a brisa passa e proporciona a sensação de um assobio calmo, feliz, o bebê abre um riso maior ainda. “É até que esses humanos são engraçadinhos.” – conclui o apartamento 155 do Edifício Morgana Le Fay.



(Publicado originalmente no site Palavras de um Coração)

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